terça-feira, 14 de outubro de 2008

Mitos e Lendas sobre Raposa Serra do Sol - Texto de Marcelo Leite

Apesar das intenções e declarações atribuídas aos ministros Carlos Ayres Britto e Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, é muito improvável que o STF anule os efeitos do decreto de 2005 da Presidência da República que homologou a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS, para simplificar) de modo contínuo.


Lula, FHC e o contraditório

O processo administrativo de identificação, demarcação e homologação da TIRSS durou mais de 15 anos. Nesse quarto de século, sofreu todo tipo de contestação. Cada uma delas foi sendo derrubada nas várias esferas, inclusive no Supremo (só neste ano o ministro Ayres Britto deu duas decisões contrárias aos contestadores). O decreto homologador de Lula não foi o início, mas sim o coroamento do processo, que formalizou o que havia sido preparado mas não concluído por seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso.

Este, aliás, é um dos mitos que cerca a TIRSS. Blogs tucanos dizem que FHC demarcou a terra em ilhas e que Lula voltou atrás, mas não é verdade. Nelson Jobim, quando ministro da Justiça de FHC, de fato baixou portaria desmembrando a TIRSS, mas seu sucessor Renan Calheiros, ainda no governo FHC, revogou a portaria e reconstituiu a reserva contínua.


Integridade territorial

Tampouco é verdade que a TIRSS, por estar em área de fronteira, implica perda de soberania sobre a terra e ameaça à integridade territorial, como se apressam a afirmar deputados e blogueiros mais ou menos próximos do PCdoB e de militares ultranacionalistas (e antiindígenas). O decreto de homologação, que completa três anos amanhã, afirma em seu artigo 4o:

"É assegurada, nos termos do Decreto no 4.412, de 7 de outubro de 2002, a ação das Forças Armadas, para a defesa do território e da soberania nacionais, e do Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, para garantir a segurança e a ordem pública e proteger os direitos constitucionais indígenas, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

"Parágrafo único. As Forças Armadas e o Departamento de Polícia Federal utilizarão os meios necessários, adequados e proporcionais para desempenho de suas atribuições legais e constitucionais."

Quem se der ao trabalho de consultar o decreto no 4.412 acima mencionado, verificará que militares e policiais federais não precisam "pedir licença para os índios" para lá entrar. Só para a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, e isso quando quiserem instalar unidades militares e policiais nas reservas (art. 2o). Esta, por sua vez, "poderá solicitar manifestação da Fundação Nacional do Índio - FUNAI acerca de eventuais impactos em relação às comunidades indígenas das localidades objeto das
instalações militares ou policiais".


A TI Yanomami, homologada há quase 16 anos com área cinco vezes maior e também na fronteira, não se tornou uma nação indígena independente. Era o que alegava campanha que teve larga publicidade nos anos 1980 no jornal O Estado de S. Paulo. Há na área dois pelotões de fronteira, em Surucucu e Auaris. Na TIRSS há outros dois, em Uiramutã e Pacaraima.


Soberania e ONGs estrangeiras

Boa parte dos textos retrógrados publicados contra a TIRSS, na prática, negam a condição de brasileiros aos 15 ou 18 mil macuxis, taurepangues, ingaricós, patamonas e uapixanas que ali vivem. Aliás, como lembrou em entrevista de 15 min à TV Estadão a advogada especializada em direito sócio-ambiental Ana Valéria Araújo, do Fundo Brasil de Direitos Humanos, Roraima só é do Brasil porque Joaquim Nabuco defendeu sua posse, em disputa com a Inglaterra, com base justamente a presença de índios brasileiros por lá. (A entrevista, de resto, é uma aula imperdível.)

Reconhecer aos índios, juridicamente, a óbvia posse da terra que ocupam antes de qualquer "brasileiro que paga imposto" (= não-índio), por aquela lógica estreita, equivale a ceder soberania para estrangeiros. Deve ser porque o Conselho Indígena de Roraima (CIR), em março de 2004, aliada à ONG Rainforest Foundation, dos EUA, denunciou o Estado brasileiro à Organização dos Estados Americanos (OEA) por violação aos direitos indígenas. Como narram Egon Heck, Francisco Loebens e Priscila D. Carvalho no artigo "Amazônia indígena: conquistas e desafios", "em 6 de dezembro de 2004 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomendou ao Governo do Brasil quatro medidas:

proteger a vida e a integridade pessoal dos povos indígenas Ingaricó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapichana, respeitando sua identidade cultural e sua especial relação com o território ancestral;
assegurar que os beneficiários possam continuar a habitar suas comunidades, sem nenhum tipo de agressão, coação ou ameaça;
abster-se de restringir ilegalmente o direito de livre circulação dos membros dos povos
indígenas Ingaricó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapichana; investigar séria e exaustivamente os fatos que motivaram o pedido de medidas cautelares".

Em outras palavras, o que os inimigos da TIRSS acusam de ser um complô internacional contra a soberania brasileira, na realidade, é uma tentativa de usar pressão de um organismo multilateral do qual o Brasil faz parte para que o país cumpra a sua própria Constituição, no artigo 231: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".


Fazendeiros produtivos x índios primitivos

O mesmo artigo 231 afirma em seu parágrafo 6o: "São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé".

O que poucos sabem, porque não se diz, é que a maioria dos ocupantes de terras indígenas - ocupação essa inciada quando as terras já estavam em processo de identificação e demarcação - aceitou indenização pelas benfeitorias e deixou a área. Havia coisa de 200 unidades de produção, das quais restaram umas 60. Entre elas, os seis arrozeiros que, segundo o governo estadual de Roraima, respondem por 6% do PIB do Estado (não há notícia de que o governador tucano José de Anchieta Júnior tenha feito
cálculo similar para informar quanto representa a atividade econômica dos 15 ou 18 mil índios da TIRSS, que têm por exemplo 50 mil cabeças de gado por lá).


Terra demais para índio

Usando apenas dados disponíveis na internet, é possível fazer algumas contas interessantes sobre a alegação de que 17.475 km2 para 15 ou 18 mil índios é terra demais para eles.

O Estado todo tem 224.298,980 km2 e 391.317 habitantes. Isso dá 0,57 km2/hab. A população da TIRSS é de 18.751 pessoas, mas suponhamos que só 15 mil sejam de fato índios - eles teriam portanto, algo como 1,17 km2/hab, só duas vezes mais que a média do Estado. Agora considere a argumentação de que os 60 agricultores nas terras indígenas ocupem "só" 1% da reserva, ou cerca de 180 km2. Dá 3 km2/pessoa, bem mais que o quinhão dos verdadeiros donos da terra - ou alguém dúvida de que os índios chegaram antes?


Precedentes no STF e em MS

Se for para duvidar de alguma coisa, é mais prudente duvidar de que o STF volte atrás em todas as suas decisões anteriores e anule o decreto de homologação de 2005, desmembrando a TIRSS. Seria preciso demonstrar como isso atenderia melhor ao art. 231 da Constituição, ou provar que o processo de demarcação conduzido pela Funai e pelo Ministério da Justiça ao longo de 15 anos ocorreu em desacordo com ele, com outras partes da Constituição ou com a legislação que disciplina esse tipo de ação administrativa.


Autor: Marcelo Leite
Data de publicação: 14/04/2008
Fonte: Folha Online-Blogs-Ciência em Dia