quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Mentiras e verdades sobre Raposa Serra do Sol

Excelente artigo!!!
 
Paz a todos,
Ana Kristina
 
 

Enviado por Rodrigo Taves -
9/12/2008
12:42

Mentiras e verdades sobre Raposa Serra do Sol

 

Rodrigo Taves

Com o conhecimento de causa de quem já esteve algumas vezes em Raposa Serra do Sol e conhece bem a geografia do conflito, posso afirmar algumas coisas a vocês: alguns argumentos usados no debate não passam de mentiras, falácias, empregadas até por autoridades e pessoas importantes no estado _ como o governador José de Anchieta Júnior, um defensor intransigente dos arrozeiros _ com o exclusivo intuito de enganar quem não conhece de perto o que está em jogo.

A mentira mais grave é a de que a expulsão dos fazendeiros que produzem arroz nas terras indígenas e a destinação de toda a área da reserva exclusivamente aos índios acarretaria algum problema de segurança nacional, por ser aquela uma área de fronteira com Venezuela e Guiana.

1) A área de fronteira já é (e sempre foi) ocupada pelos índios em Raposa Serra do Sol. Os arrozeiros estão do outro lado da reserva, mais próximos à capital, Boa Vista, ocupando ilegalmente as margens dos rios da reserva, de onde tiram (sem licença ambiental) a água que irriga suas plantações. A área da reserva é imensa. Os arrozeiros não estão nem aí para o que acontece na fronteira.

2) O fato de a reserva pertencer apenas aos índios (com a consequente expulsão dos arrozeiros) não muda em nada a situação jurídica da região: a terra continua sendo da União e os militares das Forças Armadas têm acesso irrestrito a elas em qualquer momento, em qualquer situação. Problemas na fronteira, se existem, são causados pela irrisória presença de efetivo militar nos postos e pelotões de fronteira, e no fato de esses postos existirem em muito menor número do que o necessário para vigiar todos os pontos de acesso ao território nacional pela imensa fronteira seca do país.

3) Os índios yanomâmi ocupam _ há dezenas de anos, saibam _ uma área muito maior (mas muito maior mesmo) que Raposa Serra do Sol, no lado oeste do estado, exatamente na faixa de fronteira com a Venezuela. A situação dos yanomâmi está consolidada há anos e lá não se vê generais do Exército reclamarem do risco à soberania nacional. E sabem por que? Porque lá os arrozeiros nunca tiveram interessem em se fixar, por ser uma região mais inóspita, sem grandes e caudalosos rios dos quais eles possam tirar água para irrigar suas plantações.

4) A área dos yanomâmis (assim como Raposa Serra do Sol e outras áreas índigenas na fronteira, tanto em Roraima quanto no Amazonas e em Rondônia) tem postos de fronteira do Exército, e só não tem mais porque o Exército não quer (ou não pode). A convivência entre índios e militares é tranqüila e pacífica em toda a faixa de fronteira da Amazônia, exceto pelos momentos em que alguns soldados e sargentos cometeram violências sexuais contra as indiazinhas que vivem perto dos pelotões. Ou seja, nos momentos em que ocorreram problemas, os índios eram sempre vítimas, nunca agiram para prejudicar a segurança nacional. Para os que não conhecem, posso afirmar: os índios são pobres, miseráveis, tão indefesos quanto os pobres brancos, mulatos e negros que habitam nossas favelas na cidade grande. A área dos yanomâmi entra pelo território venezuelano a dentro, e a convivência é tranqüila. Não há índios acusados de tráfico de drogas ou de armas. São os traficantes que passam pelo território deles _ com o conhecimento das Forças Armadas e da PF, que não têm dinheiro para montar a infra-estrutura necessária para coibir os crimes. Os índios não têm culpa disso, e sofrem vendo alguns de seus integrantes serem aliciados para os crimes, assim como os brancos são em todas as grandes cidades do país.

 A segunda grande mentira é a de que há divisão entre os índios sobre se querem a demarcação em área contínua ou em ilhas (em outras palavras, mais claras para quem tenta entender o problema de longe: se deixam os arrozeiros na área ou se eles saem).  Mais uma vez, posso afirmar com o conhecimento de quem rodou toda a reserva sozinho, observando e conversando com todos: em Raposa Serra do Sol há uma imensa maioria de índios minimamente organizados pelo CIR (Conselho Indigenista de Roraima) e uma pequena parte dos índios claramente influenciada pelo poder econônico dos arrozeiros. Muitos desses que são contra a expulsão dos arrozeiros trabalham ou já trabalharam em suas enormes fazendas, foram assalariados, sustentados pelos arrozeiros, e têm promessas de voltar a se-lo, se as fazendas de arroz puderem permanecer na região.

Mais uma vez, insisto: só o que está em jogo em Raposa é se os grandes arrozeiros podem ficar na área ou se serão expulsos. São grandes fazendeiros numa área de índios pobres, que vivem de sua agricultura de subsistência. Um dia já houve grandes áreas de garimpo na reserva (como, de resto, em outras áreas da Amazônia), mas a produção era controlada por brancos, que enriqueceram e empobreceram na reserva.  Os índios entram nessa história como coadjuvantes, quase sempre aliciados para fazer o trabalho pesado para arrozeiros, garimpeiros e outros interessados na exploração econômica da reserva.

Neste ponto, entra a terceira mentira da história: a de que há grupos estrangeiros interessados em ocupar o território da reserva para explorar as nossas riquezas mineirais, o petróleo, o ouro e os diamantes que possa haver naquelas terras. Gente, a propriedade é demarcada e homologada para uso exclusivo dos índios, mas continua sendo da União. Só pode entrar na área e explorar a área, além dos índios, quem o governo brasileiro autorizar. Quem entrar lá sem autorização precisa ser expulso, e o Brasil continuará tendo autonomia para isso. Repito: o Exército só não expulsa hoje, só permite garimpos ilegais, tráfico de drogas, presença de guerrilheiros das Farc e outros crimes porque não tem estrutura para coibir _ e isso não tem nada a ver com os índios, e sim com as dificuldades e incompetências do próprio país.

A questão de fundo é apenas uma: o governo, num determinado momento da história (trinta, quarenta, cinquenta anos atrás), permitiu que brancos se arvorassem donos de terras da União dentro de uma área habitada apenas por índios. Os brancos foram se aventurar nessas regiões distantes porque viam nas áreas potencial para exploração comercial. No caso de Raposa, viam os rios de onde podiam tirar a água e os campos férteis para as grandes produções de arroz. Há outras regiões do país _ dentro ou fora de áreas índígenas, é bom que se diga _ que latifundiários brancos grilaram, ocuparam, dominaram, sob o poder das armas ou em conluio com donos de cartório inescrupulosos. Ou alguém desconhece os problemas de pistolagem e grilagem de terras no Pará, em Mato Grosso, no Tocantins, no Maranhão...

Pois bem, a questão é apenas esta: esses brancos que se arvoraram donos de terras da União (dentro de Raposa Serra do Sol ou fora de lá) têm direito constituído porque seus crimes foram cometidos há trinta ou cinquenta anos? Se têm, que os arrozeiros permaneçam na área indígena de Raposa Serra do Sol. É verdade que eles produzem imensas quantidades de arroz, e que, num estado pobre como Roraima, essa riqueza faz diferença. E é só por isso _ repito, mais uma vez: apenas por motivos econômicos _ que eles têm o apoio da elite do estado, do governador, dos deputados e dos empresários. É fato que a produção de arroz responde por 6% do PIB do estado.  Mas a questão é: a produção é tirada de uma terra grilada ou ocupada irregularmente por brancos no passado. Se os arrozeiros saírem, as terras voltam na íntegra às mãos dos índios, que continuarão com sua vida tranqüila, solitária e miserável, com sua agricultura de subsistência, com sua desimportância econômica, pelo menos sob a ótica comercial dos brancos. O PIB de Roraima de fato vai encolher. Mas é isso que as autoridades de Roraima têm de falar às claras, têm de botar no centro do debate, e não ficar falando de ameaça à soberania nacional, ora bolas!

Vale a pena fazer vistas grossas à grilagem, à pistolagem, à ocupação irregular de terras públicas em nome do desenvolvimento econômico, da produção estabelecida, do fortalecimento econômico? Ou é melhor perder 6% do PIB do estado mas manter a ordem, a legalidade, reparar as injustiças e as irregularidades do passado. É isso que está em jogo com a decisão de amanhã do STF. Não caiam nesse argumento de ameaças à soberania nacional, de problemas para a segurança de nossas fronteiras e outras baboseiras como essas, faladas com o único intuito de ludribiar a boa fé de quem não conhece a questão de perto. Nada disso é verdade.

E outra coisa: para os que acham que é possível, para o futuro, encontrar uma forma de convivência pacífica entre índios e arrozeiros em Raposa Serra do Sol, posso garantir que não é. As tropas da PF e do Exército podem manter a paz por um mês, seis meses, um ano. Quando os soldados forem embora,  índios e arrozeiros vão voltar às vias de fato. Os episódios de violência do passado _ recente e remoto _ deixaram marcas (mágoas, ódios, ressentimentos) que jamais serão apagadas. A convivência é absolutamente impossível. A paz só voltará em Raposa Serra do Sol quando os arrozeiros _ todos eles gaúchos, paranaenses, de outros estados _  estiverem bem longe dali. Não se descarta um ato de vingança, é claro, mas o interesse daqueles homens nas terras é apenas econômico. Se forem expulsos de uma área que nunca foi deles, partirão para encontrar outras terras que possam grilar ou comprar baratinho, com o objetivo de retomar a produção. A vingaça passaria a ser único motivo para eles voltarem ao nordeste de Roraima. Só assim Raposa Serra do Sol talvez venha a ter paz.

Por isso, peço aos ministros do STF: façam o que têm de ser feito agora, sigam o relatório do ministro Ayres Britto, que foi primoroso em seus argumentos jurídicos. Tomem agora a decisão mais dura e radical de retirar os poderosos produtores de arroz para tentar resolver os problemas em Raposa Serra do Sol de uma vez por todas, sem criar inúmeros outros problemas em terras indígenas espalhadas por todo o território nacional. Lembrem que problemas iguais ou parecidos com esses foram vividos em outras reservas indígenas, de outros estados, e elas sempre foram demarcadas de forma contínua, criando uma situação de fato que impediu o recrudescimento da violência. Uma coisa é certa: se o STF não determinar a saída dos arrozeiros, Raposa Serra do Sol será uma reserva destinada a jamais conhecer a paz. 

 

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